"Um olhar de relance pelas baiucas apinhadas de Spitalgasse é quanto basta. Os fregueses passam hesitantes de uma loja para a outra, tentando descobrir o que se vende em cada uma. Aqui, tabaco; mas, e as sementes de mostarda? Ali, beterraba; mas onde é o bacalhau? Acolá, leite de cabra; mas onde é o sassafrás? Não, não se trata de turistas na sua primeira visita a Berna. Trata-se dos habitantes de Berna. Não há um que se consiga lembrar de ter comprado chocolate ainda há dois dias numa loja chamada Ferdinand, no número 17, ou carne na charcutaria Hof, no número 36. Cada estabelecimento, bem como a sua especialidade, têm de ser descobertos de cada vez. Muitos andam com mapas, seguindo o percurso desejado de arcada em arcada, na cidade onde viveram toda a vida, na rua por onde passam há muitos anos. Outros andam com caderninhos, para neles registarem o que aprenderam durante os breves instantes em que ainda o conseguem recordar. É que neste mundo as pessoas não têm memória.
Quando está na hora de ir para casa, ao fim do dia, cada um consulta o seu livro de moradas, para saber onde mora.
(...)
Ao chegar a casa, cada homem encontra uma mulher e umas crianças que esperam por ele à porta, apresenta-se, ajuda a fazer o jantar, lê histórias aos filhos. Do mesmo modo, cada mulher que chega do emprego encontra um marido, filhos, sofás, candeeiros, papel de parede, loiças. Depois do jantar, mulher e marido não se deixam ficar sentados à mesa a conversar sobre o dia que tiveram, a escola dos filhos, a conta bancária. Em vez disso, sorriem um para o outro, sentindo o sangue a ferver e a mesma dor entre as pernas de quando, há quinze anos, se encontraram pela primeira vez. Procuram o quarto, avançam cambaleantes por entre fotografias de familiares que não reconhecem e vivem uma noite de volúpia. É que são só o hábito e a memória que esfriam as paixões da carne. Sem memória, cada noite é a primeira noite, cada manhã a primeira manhã, cada beijo, cada carícia, os primeiros. Um mundo sem memória é um mundo do presente.
O passado só existe nos livros, nos documentos. Para se conhecerem a si próprias, as pessoas trazem consigo o Livro da Vida, onde está anotada a história das suas vidas. Lendo diariamente as suas páginas, conseguem relembrar a identidade dos pais, saber se nasceram num estrato alto ou baixo, se foram bons ou maus alunos, se têm ou não uma vida de sucesso. Sem o Livro da Vida, as pessoas não passam de fotografias instantâneas, imagens bidimensionais, fantasmas. Nas frondosas esplanadas de Brunngasshalde, pode ouvir-se os gritos angustiados de um homem que acabou mesmo agora de ler que um dia matou outro homem, os suspiros de uma mulher que acabou de descobrir que foi cortejada por um príncipe, uma outra que não cabe em si de contente por ter descoberto de repente que se formou há dez anos na Universidade com nota máxima. Alguns passam as horas do crepúsculo sentados à mesa a lerem os seu Livros da Vida; outros preenchem freneticamente mais algumas páginas com os acontecimentos do dia.
À medida que o tempo passa, o Livro da Vida de cada pessoa vai-se tornando cada vez maior, até já não poder ser lido na totalidade. E então há que escolher. Os homens e as mulheres mais velhos são capazes de ler as primeiras páginas, para se conhecerem na juventude; ou, então, lêem a parte final, para se conhecerem nos últimos anos.
Também há os que pura e simplesmente deixaram de ler. São os que abandonaram o passado, os que decidiram que pouco lhes importa se ontem eram ricos ou pobres, cultos ou ignorantes, orgulhosos ou humildes, apaixonados ou de corações vazios - tal como pouco lhes importa saber como é que a brisa sopra por entre os seus cabelos. São pessoas que nos olham directamente nos olhos e têm firme o aperto de mão. São pessoas que caminham com a agilidade da juventude. Que aprenderam a viver num mundo sem memória."
(in "Os sonhos de Einstein", Alan Lightman)
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